A terceira guerra mundial, os BRICS e a salvação do planeta
Em 2024 o mundo enfrenta quatro problemas: a guerra global, a desigualdade social, o colapso ecológico, o futuro da ONU e a falta de alternativas credíveis
Faço a mesma pergunta que o grande intelectual comunista português, Bento Jesus Caraça, fez em 1932 e subscrevo o mesmo prognóstico. Depois de afirmar que perante a proximidade da Primeira Guerra Mundial, “os intelectuais (com excepção de Romain Rolland na França, e eu acrescentaria, Karl Kraus na Áustria), em vez de lançarem na balança todo o peso do seu prestígio para procurarem evitar o desencadeamento da catástrofe e pôr ordem num caos de loucura, usaram desse mesmo prestígio para activar a fogueira, para aumentar a desordem. Onde deviam elevar-se, aviltaram-se, ao desempenho de uma missão nobre e humana preferiram a traição”. A pergunta é: terá, ao menos, a situação mudado no presente? Vêem-se, porventura, sinais claros e precisos de um propósito de resgatar um passado escuro? A resposta de BJC é inequívoca: “a verdade é - não! Existem, sem dúvida, núcleos apreciáveis de ‘homens firmes’, de ‘homens de boa vontade’ que, na luta contra a guerra, põem o melhor da sua inteligência e da sua actividade, mas, infelizmente, a maioria, a grande maioria dos intelectuais apresta-se para uma nova renegação do espírito. Se uma guerra estalar, e nunca estivemos tão perto dela, veremos de novo surgir, por esse mundo, milhares de fáceis heróis de escrevaninha, a bolsar as mesmas torrentes de mentiras que levem à frente da batalha – os outros… e lhes assegurem a eles cómodas situações à retaguarda.” Dez nos antes, Karl Kraus escrevia em Os Últimos Dias da Humanidade “O humor não é senão a acusação lançada a si próprio por alguém que não enlouqueceu ante a ideia de ter suportado testemunhar as coisas deste tempo no seu perfeito juízo”. E desabafava: “uma tão plena confissão de culpa de pertencer a esta humanidade há-de ser bem-vinda em algum lugar, e alguma vez há-de ter utilidade”.
Tal como Caraça, Rolland e Kraus, não me conformo com que uma nova guerra mundial aconteça, agora pela terceira vez. E certamente a última, se for, como é previsível que seja, uma guerra nuclear. “Não, em me nome!” O papel do intelectual é juntar-se à cidadania activa pela paz, aos partidos políticos e aos movimentos sociais que genuinamente querem a paz e denunciam as forças globais que promovem a guerra como meio de perpetuar o seu poder. Mas a experiência mostra-nos que essa luta, para ser eficaz, tem de ter uma dimensão organizativa. É dela que falarei neste texto.
Desde há cem anos, a Europa vive a caminho de uma guerra enquanto cura as feridas da guerra anterior. De cada vez, as razões são diferentes, mas têm tido em comum o facto de, embora terem aqui nascidas, arrastarem o mundo consigo e, nessa medida, serem globais. Temos, pois, vivido entre-guerras. É talvez pouco conhecido que mal terminara a Segunda Guerra Mundial, já as forças conservadoras, sobretudo católicas e camponesas, se perguntavam voluntariosamente quando ia começar a nova guerra, agora contra a Rússia. A retórica da emergente Guerra Fria excitava os ânimos, e estes só arrefeceram quando o Ocidente assistiu passivamente ao esmagamento soviético da revolta Húngara de 1956. A paz estava para durar. A paz que durou foi a tornada possível graças à Guerra Fria e às muitas guerras quentes regionais em África, no Médio Oriente e na Ásia. O que há de novo agora?
Se analisarmos os debates internos nos EUA antes da intervenção destes nas duas primeiras guerras mundiais, verificamos que os EUA começaram por se declarar neutrais; a intervenção posterior a favor dos aliados foi de algum modo relutante e contra a ideologia do isolacionismo que tivera basta popularidade até meados do século XX. Ao contrário, a terceira guerra mundial em gestação é um projecto dos EUA. A Europa é apenas um aliado subalterno. Porquê? Nas duas primeiras guerras, o imperialismo norte-americano estava numa fase ascendente e as guerras foram usadas apenas para consolidar essa posição globalmente dominante. De cada guerra os EUA saíram reforçados. Basta recordar que em 1948 o PIB dos EUA era quase metade do PIB global (em 2019 era 24%). Neste momento, os EUA estão em declínio e a guerra foi a opção tomada desde o tempo do presidente Clinton para travar o declínio, porque é no complexo militar-industrial que os EUA têm a mais inequívoca superioridade em relação aos poderes rivais. Basta recordar as mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo. De facto, os EUA têm estado de guerra permanente desde a sua fundação, mas as guerras nunca são as mesmas, e apenas têm em comum o facto de terem lugar muito longe das suas fronteiras. Hoje, trata-se de uma guerra de hegemonia; se até algum tempo a opção nuclear era radicalmente excluída, hoje passou a ser um dos cenários possíveis. A gravidade da situação decorre de o declínio dos EUA não se manifestar apenas na política e na economia globais. É hoje flagrantemente visível a nível interno. No país mais rico do mundo. No país mais rico do mundo, uma em cada seis crianças americanas pode não saber de onde virá a sua próxima refeição. Dos jovens delinquentes (idades entre 10 e 17 anos) internados em instituições de detenção, 42% são negros apesar da percentagem de jovens negros na população jovem dos EUA ser de 15%. Em 2023, houve 630 massacres (mass shootings, em que mais de 4 pessoas foram mortas). Quase 50.000 pessoas morreram com armas de fogo em 2021, sendo que mais de metade foram suicídios. Em 2023, havia 653.100 pessoas sem abrigo, um aumento de 12% em relação a 2022. As eleições de 2024 serão certamente livres, mas não serão equitativas, dada a presença de dark money no financiamento das campanhas, e podem mesmo não ser pacíficas.Em face deste declínio multidimensional, os EUA concentram cada vez mais energia na guerra de hegemonia. A guerra de hegemonia é a que pretende concentrar e manter o poder no Estado hegemónico em cujo interesse a ordem internacional é estabelecida, uma ordem, por natureza, unipolar. A dualidade de critérios na “ordem baseada em regras” (compare-se a Ucrânia com a Palestina) é a característica principal da ordem hegemónica. Com o colapso da União Soviética e o fim do Pacto de Varsóvia (1991), a guerra de hegemonia pareceu ganha para sempre. Mas como o desenvolvimento do capitalismo global é desigual e combinado, os desafios à hegemonia dos EUA foram surgindo, em grande medida originados pelo desenvolvimento da China. A China comunista começou em 1949 a preparar-se para um século de fortalecimento que reponha o China no lugar cimeiro do sistema mundial que manteve até 1830, ainda que desde o século XVI numa certa multipolaridade com a Europa imperial. Como afirma Xulio Ríos em A metamorfose do Comunismo na China, Mao Tse Tung pôs a China de pé, Deng Xiaoping desenvolveu-a e Xi Jinping personifica o último impulso para tornar a China uma país poderoso com um posição central no sistema global, culminando em 2049. Enquanto Mao pôs de lado a cultura tradicional confucionista e Deng deu prioridade ao desenvolvimentismo em detrimento do marxismo, o Xiismo busca uma síntese das três ideologias fundadoras com a ideia do “socialismo com as peculiaridades chinesas na nova era”.Porque, durante o tempo da globalização, a China foi a parceira que ajudou a disfarçar o declínio económico dos EUA, os alarmes da guerra hegemónica só começaram a soar no tempo de Bill Clinton. Rapidamente os neoconservadores (um grupo ideológico que vai de Hilary Clinton a Victoria Nuland e seu marido, para quem não se deve negociar com os rivais da hegemonia dos EUA; deve-se antes destruí-los) assumiram o controle da politica externa dos EUA. Os rivais têm elos fracos e é por aí que se deve atacar. A China tem dois: o seu principal aliado, a Rússia, e Taiwan. A guerra da Ucrânia foi desde o início uma estratégia de regime change (não na Ucrânia e sim na Rússia). O objectivo era desgastar os líderes políticos russos (sobretudo Putin) tal com se fizera na década de 1980 até que chegasse um duplo de Gorbatchov que transformasse a Rússia num amigo dos EUA, e, portanto, num inimigo da China, o que de imediato provocaria o confinamento da China à Ásia. Como é hoje evidente, o objectivo falhou, a Rússia fortaleceu-se e a sua presença multisecular na Eurásia ampliou-se ainda mais. O povo mártir da Ucrânia e o povo europeu manipulado por uma guerra de propaganda sem precedentes, estão a pagar um alto preço por esta estratégia. Como Volodymyr Zelensky sabe pouco de relações internacionais, não conhecia a frase de Lord Palmerston com os olhos nos EUA: “as nações não têm amigos ou aliados permanentes; só têm interesses permanentes”. Embora seja pura especulação é de supor que se não puder ser substituído, Zelensky pode vir a ter um acidente fatal nos próximos tempos. O outro elo fraco da China é Taiwan e é aí que a guerra de hegemonia se pode vir a travar com mais violência. Será uma nova Ucrânia, mas onde os EUA aprenderão com os erros cometidos na Europa.Como os senhores da história têm desprezo pela impertinência desta sua serva, não previram a resistência anti-colonial do povo palestiniano, desta vez liderado pelo Hamas. A guerra de Israel contra a Palestina é qualitativamente diferente da guerra da Rússia contra a Ucrânia por três razões principais. Por um lado, a primeira é uma guerra colonial de extermínio, a segunda é uma guerra de contenção. Por outro lado, os EUA não são um aliado de Israel. Os EUA são Israel, porque o lobby pro-Israel controla tanto a política interna como a política externa dos EUA. Além disso, a guerra de Israel, longe de ser uma perversão do mundo ocidental, é o seu espelho mais cruel e fidedigno: uma civilização que desde o século XVI cria e celebra a humanidade, deshumanizando a maior parte dela. Finalmente, do outro lado, estão os derrotados históricos do expansionismo europeu, o mundo islâmico. A possibilidade de uma escalada global da guerra é neste caso qualitativamente muito maior. Daí o desinvestimento imediato na Ucrânia. Também no Médio Oriente os neoconservadores procurarão encontrar o elo fraco das alianças da China. Este elo é, sem dúvida, o Irão. Será ele provavelemente o próximo alvo.
A resistência contra a Terceira Guerra Mundial
A história é sempre contingente por mais que alguns factores pareçam determiná-la. A terceira guerra não é inevitável. As forças de resistência e da paz não estão na Europa, o continente mais violento do mundo. É certo que no pós-Segunda Guerra surgiu na Europa um poderoso movimento pela paz cuja maior (e última) manifestação foram os protestos contra a guerra no Iraque em 2003. Este movimento foi particularmente forte na Alemanha que, no entanto, desde a guerra da Ucrânia voltou às suas perigosas pulsões bélicas. A resistência está no Sul global. Neste texto entendo por Norte global, a Europa dos antigos projectos imperiais (sem a Rússia), assim como o Japão e as ex-colónias onde dominaram o racismo e o nacionalismo brancos (EUA, Canadá, Nova Zelândia e Austrália); por sua vez, o Sul global são todas as outras ex-colónias europeias e países que, não tendo sido colónias europeias, estiveram dominadas pela Europa (caso da China depois das guerras do ópio). É possível que esta designação seja transicional e não dure muito, uma vez que é subsidiária da mais recente fase da globalização colonial-capitalista que, como sabemos, tem vindo a perder terreno. O outro problema desta designação e da dicotomia que ela comporta é homogeneizar as diferentes realidades sócio-históricas incluídas em cada um dos polos da dicotomia. Uma análise histórica não eurocêntrica mostrará a grande heterogeneidade tanto do Norte global como do Sul global. Basta ter em mente que o Norte global inclui potências europeias coloniais e algumas da suas ex-colónias. Por outro lado, dentro da Europa sempre houve assimetrias típicas do colonialismo interno, da Europa do Norte em relação à Europa do Sul, da Europa Central em relação à Europa de Leste, das cidades italianas e suas plantações em Chipre com trabalho escravo eslavo (séculos mais tarde Hitler designará os eslavos como Untermenschen, sub-humanos), para não falar dos Balcãs cuja pertença à Europa foi recorrentemente posta em dúvida.
A mesma (ou maior) diversidade se observa no que é hoje o Sul global. As temporalidades, as lógicas de intervenção e de interacção e as economias políticas do extractivismo colonialista do Atlântico norte, do Atlântico sul, do Índico e do Mar da China foram muito distintas, para além de neles se incluírem países que não estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Não temos hoje a “inocência” inaugural do princípio do século XX europeu quando todos os avanços da sociedade industrial e das comunicações eram vistos como factores de homogeneidade. Obviamente, que homogeneização e convergência tiveram e continuam a ter lugar, mas, contraditoriamente, também se vincaram diferenças, desencontros, reinvenções de passados distintos, vocações ético-políticas divergentes. As dicotomias têm, pois, de ser usadas com a máxima cautela e a sua utilidade é sempre provisória e limitada.
Com todos estes caveats, o Sul global conta hoje com um actor privilegiado, a China e com uma rede densa de cooperações regionais e temáticas impressionante em que se destaca os BRICS+. A China é comunista? A China é imperialista? Qual a orientação que a China dará ao Sul global enquanto seu actor privilegiado? Qualquer destes temas suscita debate. A China é governada por um partido comunista altamente centralizado com cerca de noventa milhões de militantes; no plano económico é hoje uma economia mista: uma base capitalista--a grande maioria das empresas (61.2%) e do emprego (82.1%) pertence ao sector privado e rege-se pelas regras do mercado--com uma excepcionalmente grande participação de empresas públicas e com um excepcionalmente grande e activo papel do Estado na direcção da economia e no controle financeiro. Esta estrutura, combinada com as relações exteriores da China (contratos de benefício mútuo), parece indicar um padrão de comportamento que não coincide com o padrão imperialista (dominação e extracção por via de contratos desiguais, tutela militar ou violência). Independentemente desta avaliação, o que deve ser realçado é que a China opera em articulação com muitos outros países de desenvolvimento intermedio e com forte consciência da sua soberania. A organização BRICS+ é hoje a forma organizativa mais densa e operacional do Sul global.
Como não se trata de uma nova edição do Movimento dos Não-Alinhados, os quais procuravam modelos de desenvolvimento nem capitalistas ocidentais nem socialistas soviéticos, há que perguntar qual é o principio orientador do Sul global e em que medida é que ele pode ser um facto de paz e de prevenção da terceira guerra mundial.
Em meu entender, o Sul global visa uma alternativa que é talvez mais radical que a alternativa entre capitalismo e socialismo. Trata-se da possibilidade de um capitalismo sem colonialismo. A ideia de Leon Trotsky de que o desenvolvimento global do capitalismo é desigual e combinado assenta precisamente nas variações da combinação entre capitalismo e colonialismo nas diferentes regiões do mundo. Tenho defendido que desde o século XVI a dominação moderna é constituída por uma tríade: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Tenho também defendido que as três formas de dominação actuam em permanente articulação e que nenhuma delas é sustentável sem as outras. Ou seja, não imagino uma sociedade capitalista que não seja colonialista e patriarcal. O colonialismo histórico (ocupação territorial por um país estrangeiro) ainda não terminou, como nos mostra o horror diário do genocídio do povo de Gaza, e não podemos também esquecer o colonialismo a que está submetido o povo saharaui. Mas hoje o colonialismo prossegue sob muitas outras formas, tais como o racismo, a pilhagem dos recursos naturais, o desmatamento das florestas e o envenenamento dos rios, o land grabbing, a deslocação forçada de populações, o crescente número de refugiados ambientais, o encarceramento massivo da população negra em alguns países, os contratos desiguais, as fronteiras-fortalezas de arame farpado e cimento, etc. A razão da permanência do colonialismo e do patriarcado está em que o capitalismo não se sustenta sem que uma fracção maior ou menor do trabalho seja sobre-explorado ou não seja pago, ou, ainda, pura e simplesmente descartável. O colonialismo e o patriarcado, ao gerarem populações racializadas ou sexualizadas, são as dominações que tornam possível essa sobre-exploração e esse roubo do trabalho. E é no Sul global que prevalecem com mais intensidade.
O Sul global é hoje uma vasta e complexa rede de práticas e de ideologias que reivindicam o fim da dualidade entre o capitalismo aparentemente civilizado das metrópoles do Norte e o capitalismo bárbaro das colónias e neocolónias. Ou seja, o capitalismo sem colonialismo a nível global. Suspeito que se tiverem êxito, o que emergir da sua vitória não será o capitalismo tal como o conhecemos, mas algo diferente que, por agora, podemos designar como pós-capitalismo. A versão bélica do imperialismo neoconservador norte-americano representa um esforço desesperado para que tal êxito não aconteça. No entanto, o poder económico que o Sul global hoje detém (a grande diferença em relação ao Movimento dos Não-Alinhados) pode obrigar os EUA e seus aliados do Norte global a negociar. Os BRICS+ representam hoje mais de 30% do PIB global. A negociação é única forma de evitar a terceira Guerra Mundial. Nela reside a nossa esperança.
A negociação salvará o mundo?
No início de 2024 o mundo enfrenta quatro problemas fundamentais: a guerra global, a desigualdade social, o colapso ecológico, o futuro da ONU e a falta de alternativas credíveis. Vejamos como os BRICS+ podem contribuir para resolver estes problemas.
A paz. Ao longo deste texto tentei mostrar que a única possibilidade de travar a iminente terceira guerra mundial reside na capacidade de os BRICS+ forçarem o imperialismo norte-americano a negociar. É evidente que, além dos BRICS, existem outras organizações, como a Organização de Cooperação de Shanghai (Shanghai Cooperation Organisation), que podem contribuir para o mesmo objectivo. Penso, no entanto, que os BRICS são a organização que reúne mais diversidade política e cultural e que, por isso, está em melhores condições para mobilizar as suas populações contra a guerra. A dificuldade reside em que o continente onde essas condições estão mais claramente presentes, a América Latina, é o continente mais dependente dos EUA e, portanto, onde a força desestabilizadora das organizações públicas e privadas ao serviço do imperialismo mais eficazmente se exercerá sobre os governos moderadamente transformadores. Basta lembrar o que se passa na Argentina (por culpas próprias e alheias) ou a desistência do presidente Gabriel Boric de dar satisfação às reivindicações populares tão exemplarmente manifestadas no movimento que conduziu à primeira Assembleia Constituinte do Chile (2020-2022) . O Brasil está sob constante observação imperial e o presidente Lula da Silva enfrenta um Congresso hostil constituído, nas palavras de Roberto Amaral, por homens brancos e maioritariamente ricos, quando 55% da população se declara de cor parda ou preta, quando 51% da população é constituída de mulheres que ocupam apenas 8% das cadeiras na Câmara dos Deputados e quando 37% da população passa fome. Pode suceder que o petróleo dos países do Médio Oriente que tencionam aderir aos BRICS seja mais eficaz em pressionar a negociação, o que será bom para paz, mas mau para todos os outros problemas.Desigualdade social. Entre os BRICS contam-se os países onde é maior a desigualdade social (de novo o Brasil, com uma das maiores concentrações de rendimento do mundo). Defendo neste texto que a combinação entre capitalismo e colonialismo é parcialmente responsável pelas condições nacionais e internacionais que impedem uma distribuição mais equilibrada da riqueza tanto a nível nacional como a nível internacional. As organizações internacionais são o espelho fiel dessa dupla capitalismo-colonialismo, sejam elas a ONU -- e as suas várias entidades, da Organização Mundial de Saúde (OMS) ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos, ou ao Alto Comissariado para os Refugiados-- o Banco Mundial, o FMI ou a OMC. Na medida em que os BRICS lutarem com êxito pela refundação dessas organizações ou pela sua substituição por outras é possível que se criem condições para uma distribuição mais equilibrada da riqueza. Até onde pode ir esse equilíbrio depende do que será essa nova formação pós-capitalista. Como até hoje não existiu capitalismo sem colonialismo ninguém pode garantir que tal seja possível. Nem o contrário. Colapso ecológico. Este é, sem dúvida, o grande problema e o grande desafio do nosso tempo, e também o único verdadeiramente novo enquanto problema político. Pode mesmo argumentar-se que o terror que suscita a possibilidade de uma guerra nuclear não é nada comparável ao que pode resultar do aquecimento global de 2º C acima dos níveis pré-industriais. A frustrante experiência internacional dos últimos vinte anos no sentido de impedir que tal ocorra faz prever o pior. Tenho defendido uma refundação radical dos conceitos de progresso, de desenvolvimento, de natureza, de direitos humanos para poder fazer frente a este desafio. Tal como o grande ecologista Giuseppe di Marzo, defendo que a libertação dos seres humanos não é possível sem a libertação da Terra mãe, a que indevidamente a cultura ocidental designa por natureza. E como não é possível pensar o novo senão a partir do velho, tenho vindo a propor a ideia dos direitos da natureza como parte integrante de uma futura declaração (verdadeiramente) universal dos direitos humanos, já que a distinção entre vida humana e vida não humana deixou de ter qualquer sentido para efeitos de preservar a vida no planeta terra. Faço-o na retaguarda da filosofia ancestral dos povos indígenas e camponeses e dos movimentos ecologistas orientados pela ideia de uma ecologia integral. Não há justiça social sem justiça natural. O nosso corpo é a miniatura fidelíssima da Mãe-Terra. Por isso, não podemos reivindicar uma vida sã num planeta doente, como nos lembrou recentemente o Papa Francisco.
Em face disto, e a julgar pelas posições de alguns países dos BRICS+ nas conferências da ONU para o meio-ambiente, suspeito que os BRICS serão mais parte do problema do que da solução. O único líder político de relevância internacional que tem uma consciência profunda dos desafios que enfrentamos neste domínio é o presidente Gustavo Petro da Colombia, um país que não pertence aos BRICS.
O futuro da ONU. Tal como a sua antecessora, a Liga das Nações, fundada em 1920, a ONU nasceu no fim de uma guerra mundial e com o objectivo de prevenir a ocorrência de outra guerra. Tal como a Liga das Nações, a ONU foi criada para consolidar a vitória dos Aliados. No entanto, enquanto ao tempo da Liga das Nações o isolacionismo ainda dominava o Congresso norte-americano, o que fez com que os EUA não aderissem à organização, no caso da ONU os EUA foram o seu promotor fundamental, o financiador principal, tendo até oferecido Nova Iorque para sede da ONU. As marcas da guerra estiveram bem presentes na institucionalidade das duas organizações (à semelhança do que acontece com os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, no caso da Liga das Nações os membros do Conselho Executivo foram a Inglaterra, a França, a Itália e o Japão). A Liga da Nações teve de confrontar-se com a protecção das minorias dadas as inúmeras deslocações de populações que tiveram lugar no final da Primeira Guerra, tanto na Europa de Leste como nos Balcãs. O fracasso da Liga foi-se aprofundando à medida que se foi revelando a sua incapacidade para prevenir ou resolver os conflitos que iam surgindo entre Estados, nomeadamente a invasão da Manchúria pelo Japão em 1933 e a invasão da Etiópia pela Itália em 1935. Enfraquecida pela ausência dos EUA desde o início, a Liga das Nações foi-se debilitando com a saída da Alemanha em 1933 e do Japão e Itália nos anos seguintes. Com a eclosão da Segunda Guerra a Liga das Nações passou a ser uma formalidade inconsequente.
No caso da ONU, o seu debilitamento vem de longe e por razões semelhantes às que ditaram o fracasso da Liga das Nações, ainda que os actores e os temas sejam agora diferentes. Sobreviverá a ONU ao primeiro genocídio de um povo (o povo palestiniano) transmitido em directo pelas televisões de todo o mundo? As marcas da Segunda guerra estão bem presentes na actual institucionalidade da ONU e a sua desadequação às realidades actuais é cada vez mais óbvia. No caso da Liga, os países mais fortes responderam às frustrações com a saída. No caso da ONU, os BRICS+ são um facto novo e potencialmente influente pelas razões que invoquei acima. Se se transformarem num actor colectivo coerente, os BRICS+ têm suficiente poder e influência para seguir uma de duas estratégias: ou criar instituições multilaterais que vão esvaziando a intervenção da ONU e forçando a opção pelo multipolarismo ou promover uma profundíssima reforma da ONU que envolverá a organização no seu conjunto (o Tratado Fundador, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, etc), as suas agências regionais e temáticas, a sua sede e o seu financiamento. Os EUA boicotarão por todos os meios qualquer destas soluções. Se o conseguirão ou não, depende de muitos factores, sobretudo da resolução da guerra civil interna que neste momento domina de modo latente a vida política norte-americana.
Alternativas credíveis
Nos últimos cem anos, as lutas contra as desigualdades, as injustiças e discriminações foram de dois tipos principais: as lutas entre esquerda e direita e as lutas pela libertação/autodeterminação das colónias europeias. Nem sempre se distinguiram claramente pois que, por vezes, as lutas pela autodeterminação anti-colonial foram também designadas como lutas entre esquerda e direita, como, por exemplo, no caso da Argélia. No caso das democracias liberais, as lutas entre esquerda e direita começaram por ser lutas entre projectos de sociedade e de economia política (capitalismo versus socialismo ou comunismo); mas depois de Segunda Guerra Mundial passaram a ser lutas entre diferentes concepções de capitalismo (capitalismo liberal, capitalismo social-democrata) e democracia (democracia liberal, social-democracia, democracia representativa, democracia participativa, democracia popular). Nos últimos dez anos, com a reemergência política da extrema direita e do fascismo, a dicotomia entre esquerda e direita passou a designar a luta entre a democracia e a ditadura ou democracia “truncada” ou “musculada”. As lutas anti-coloniais começaram por visar a independência política das colónias e depois passaram a incluir as lutas anti-racismo e as lutas anti-patriarcais. Hoje, sobretudo depois da emergência dos BRICS+, parecem visar uma segunda independência, a independência económica ou o capitalismo sem colonialismo, como mencionei acima.
Neste momento vivemos um estado de bifurcação na vida das lutas sociais por uma sociedade mais justa e nenhum dos tipos de luta que identifiquei acima fornecem orientação política adequada. A bifurcação é entre a manutenção da distinção entre humanidade e natureza ou uma nova epistemologia e uma nova política que parta da simbiose entre humanidade e natureza. No primeiro caso, nem as lutas entre esquerda e direita, nem as lutas anticoloniais ou anti-patriarcais oferecem alternativas credíveis. A razão fundamental reside em conduzirem lutas fragmentadas contra a dominação moderna, lutas que, ora são economicistas contra o capitalismo, ora são culturalistas e identitárias contra o racismo e o sexismo. O neoliberalismo, nas suas múltiplas dimensões político-económicas, sócio-psicológicas, culturais e religiosas, é uma fábrica incessante de não-alternativas e de falsas alternativas. No segundo caso, a simbiose da vida humana e não humana (o fim da dicotomia entre humanidade e natureza) obriga a uma refundação, tanto das categorias de esquerda e de direita, como das categorias de autodeterminação e de libertação.
Conclusão
A resposta à pergunta sobre se a negociação com o imperialismo norte-americano salvará o mundo é não. Poderá, quando muito adiar a sua destruição. Tal negociação é, contudo, fundamental para ganhar tempo, a fim de permitir a emergência e consolidação de forças políticas orientadas pela ideia da refundação epistémico-política que permita escutar a Madre-Terra e curar as suas feridas, que, afinal, são as nossas feridas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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